Uma segunda oportunidade


* Odiei o texto que se segue com tanta força que acabou por ficar encrustado no meu coração! Odiei-o porque se cruzou comigo e me deixou de fora da história. Porque se encontrou escrito por outra mão nas páginas de um livro que não era meu. Odiei o texto que se segue porque me pôs num lugar que não queria quando andava a lutar pelo meu lugar. Odiei-o porque quando o vi antevi a tal oportunidade que agora sei que foi merecida. Odiei-o porque era bonito, porque não fui eu que o descobri, porque também queria...
Já não o odeio. O tempo que cura tudo também tirou o texto da gaveta. Texto que copiei, naquela altura, envergonhada - não era para mim! O tempo também passou pelas vidas do texto que eu vi e mudou tudo. Trocou tudo de lugar. Graças a ele ouvi pela primeira vez a música de que fala... a vida é irónica... tanto significado na mesma canção que anos mais tarde apareceu do nada e me lembrou do texto.
Fica aqui hoje. Por hoje. Porque hoje sou eu quem o quer rabiscar nesse livro que, mais uma vez, não é meu!

Uma segunda oportunidade
Li recentemente, num jornal brasileiro, a história de um homem que foi atingido por um raio durante uma tempestade tropical. Um médico que passava pelo local, socorreu-o. Verificando que não era capaz de o reanimar (o infeliz sofrera de paragem cardíaca), afastou-se para pedir ajuda. Nesse momento o homem foi atingido por um segundo raio, e com isso, espantosamente, recuperou a consciência. Morto por um raio, ressuscitado por outro, aquele homem está certamente convencido que Deus lhe deu uma segunda oportunidade.
Lembro-me disto a propósito do amor. Pode haver, no amor, uma segunda oportunidade?
Fui colega, no Instituto Superior de Agronomia, de um guineense, vou chamar-lhe Mariano, que tendo sido oficial do exército português em Dili, ali conheceu e se apaixonou por uma jovem menina da aristocracia timorense. Os pais da menina, descontentes com o namoro, acusaram Mariano de estar ligado ao movimento nacionalista guineense e ele foi preso e deportado para Cabo Verde. Poucas semanas depois aconteceu o 25 de Abril e Mariano regressou a Bissau, onde o receberam como herói. A namorada de Mariano, entretanto, descobrira que estava grávida, sendo forçada pelos pais a casar com outro homem. Na sequência da invasão de Timor pelas tropas indonésias fugiu para a Austrália com o marido e o filho pequeno. Não conseguiu, porém, esquecer-se de Mariano. Alguns anos depois separou-se do marido e foi à pocura do grande amor da sua vida. Em Bissau disseram-lhe que Mariano havia partido para o Rio de Janeiro. No Brasil informaram-na que estava em Portugal. Em Lisboa, quando já pensava em desistir, encontrou na rua um soldado português que também servira em Timor. Soube através dele que Mariano estudava agronomia – e encontrou-o.
Conheci-a numa tarde de chuva. Era uma mulher de uma beleza sem exemplo, com uma cabeleira forte e negra, e uns olhos orientais que a dor tornara mais fundos. Aquela teimosia de amor deixou-me sem fôlego. “Se eu tivesse talento”, disse ao meu colega, “escreveria um romance com a vossa história”. Mariano riu-se: “eu escrevo”.
Alguns meses depois voltei a encontra-lo. Estava sózinho. Perguntei pela mulher. Mariano ficou aflito, “Voltou para a Austrália”, disse-me: “Não deu certo. Sabes, no amor não há duas oportunidades”.
“Toda a repetição é uma ofensa”, canta a mexicana Lhasa num disco de uma beleza assombrada pela melancolia, “La Lhorona”, que gosto de ouvir quando estou sozinho. “Não necessito amar, tenho vergonha”, explica Lhasa, “de voltar a desejar o que já tive”.
Eu entendo o que ela quer dizer. Mas acho que o meu coração duvida. Um raio mata, outro ressuscita. Não pode ser assim no amor?
José Eduardo Agualusa

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